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Sobre vadias, liberdade e equidade

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Muitos já conhecem sua origem, e mesmo assim questionam seu nome. Muitos dizem entender seu nome, mas questionam sua forma de protesto. Muitos dizem apoiar, “mas não acham necessários expor famílias e crianças dessa maneira na rua”. Vamos falar um pouco sobre a Marcha das Vadias?

Slut = termo da língua inglesa, que se refere a mulheres sexualmente promíscuas. O termo tem sido historicamente usado para descrever mulheres de forma depreciativa.

Em janeiro de 2011, ocorreram diversos casos de violência sexual em uma universidade de Toronto. Ao ser perguntado sobre o que poderia ser feito sobre isso, o policial Michael Sanguinetti observou que “as mulheres devem evitar se vestirem como vadias (sluts), para não serem vítimas”.

Lembra algo?

Recentemente, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) divulgou uma pesquisa na qual, entre diversos resultados assustadores, 65% dos brasileiros concordavam com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. O resultado surpreendeu a muitos e gerou revolta, que resultou na campanha “Eu não mereço ser estuprada”. Nela, mulheres postavam nas redes sociais fotos, vestidas ou não, com os tais dizeres, para mostrar que, não, a roupa não significa nada. O protesto recebeu críticas severas, principalmente no que dizia respeito às roupas usadas nas fotografias.

Imagem postada por Ricardo Zambon no Facebook, em resposta ao protesto feminino

Uma semana depois, o IPEA informou que os dados da pesquisa estavam errados, e que, na verdade, 26% dos brasileiros concordariam com a frase. Vale lembrar que, se a população brasileira tem hoje aproximadamente 201.000.000 pessoas, 26% disso seria aproximadamente 52.260.000 pessoas. Pouco? Longe disso. Mas se o protesto feminino já fora questionado e debochado durante a semana anterior, os novos resultados trouxeram comentários como “o que as feministas vão falar agora?” e “tiraram a roupa por nada [referente às mulheres que optaram por protestar despidas]”.

Porque isso é importante e o que isso tem a ver com a Marcha das Vadias

A Marcha das Vadias surgiu imediatamente após a declaração do policial canadense. A “Slut Walk” ganhou forças ao redor do mundo, e chegou no Brasil no mesmo ano. Dia 27 de abril, Porto Alegre realizará a sua 4ª edição. A Marcha “protesta contra a crença de que as mulheres que são vítimas de estupro são culpadas pela agressão, e tem como principal objetivo questionar a opressão de gênero, o machismo e a violência contra a mulher” (divulgação). Eu, enquanto participante, acrescento que, através do nome da Marcha, buscamos ressignificar o termo e expor os preconceitos, machismo e moralismo que estão embutidos nele.

“Vadia” é um termo somente usado para criticar mulheres. É um termo pejorativo usado por homens e – surpresa! – mulheres para constrangimento. O uso de termos como esse – puta, biscate, vagabunda, piranha também estão na lista – ajuda a sociedade a dar às mulheres um papel de gênero restritivo. Somos constantemente ensinadas a agirmos de maneira “correta” no que diz respeito aos nossos corpos – sendo que quem deveria decidir o que é correto para o corpo de uma mulher é única e exclusivamente a mulher. Um comportamento sexualmente livre surpreende. Uma mulher no poder – seja em casa ou no trabalho – é glorificada não pelas suas conquistas, mas justamente por ser exceção.

Logo, é simples de entender: o protesto na internet e a Marcha das Vadias buscam a autonomia da mulher sobre seus corpos. Um homem pode andar na rua sem camisa, correto? Isso ocorre porque seu corpo não é sexualizado. Uma mulher não tem esse direito, é atentado ao pudor – já que, segundo as leis, inebriadas em um machismo que conduz quase tudo na nossa sociedade, seu corpo é sexual. Os peitos de uma mulher são, nos olhos da lei, diferentes dos de um homem. Para a lei, e, vide os deboches e ameaças às mulheres que protestam de peitos de fora, para uma maioria esmagadora de pessoas, o peito feminino é uma ofensa. Aos que tanto questionaram o porquê dessa forma de protesto – e que questionarão dia 27, dia da Marcha das Vadias, novamente: as mulheres estão protestando da forma que elas se sentem mais confortáveis. Porque é sobre isso a nossa luta: termos direito de mandar a desmandar nos nossos corpos, de expô-los sem medo e sem receber julgamentos. Nosso corpo não é mais sexual que o masculino. Um decote não é provocação. Uma saia curta não é convite. Um peito de fora não é ofensa.

Foto do João Veppo, na Marcha das Vadias de 2012.

“Puta”: porque isso não deveria ser ofensa

Já passamos da parte onde seria necessário explicar porque chamar uma mulher de puta ou vadia é escroto e faz apenas de você um babaca. Vamos só lembrar de um ponto importante:

Se você acha que uma mulher com roupa x é puta, você que ache. Você tem o direito de ter pensamento pequeno e machista – desde que guarde-o pra você. Só que uma coisa é preciso entender: nem que fosse. Nem que fosse puta. Se fosse puta, merecia o mesmo respeito. Exatamente o mesmo respeito que qualquer outra mulher. Puta não é xingamento. É profissão. Você pode não gostar de prostitutas, achar uma profissão não digna ou qualquer outro adjetivo machista que não citarei aqui. É uma escolha sua e eu só lamento muito. Nunca, no entanto, a profissão de uma mulher, seja ela relacionada ao corpo ou não, é justificativa para qualquer espécie de abuso. Também é uma noção fácil de se explicar, mas para uma possível falta de compreensão, um desenho:

Será que assim dá pra entender?

“Mas mulheres também são machistas”

Esse argumento percorre toda e qualquer discussão que envolve feminismo, seja na Internet ou fora dela. Digo, sem medo de errar: não, mulheres não são machistas. Elas não podem ser. Assim como, não, negros não podem ser racistas. A lógica é bem fácil: o machismo é uma crença sustentada por um sistema – o patriarcado – que oprime as mulheres. Uma mulher não pode se oprimir. Não conseguiria falar sobre isso de melhor forma, então segue um trecho do texto “Porque não faz sentido dizer que uma mulher é machista.”, desse blog:

“Quando uma pessoa é machista, o que ela está fazendo é se servir de uma crença corrente para oprimir outras pessoas. Porém uma mulher não pode oprimir a si mesma. Ela não tem como oprimir outras mulheres por ser mulher. Ela não tem esse poder, porque mulheres não têm esse poder. Ela pode até se erguer, dizer que é machista e repetir mil vezes que mulher tem que ficar em casa e homem no trabalho, mas ela nunca será a beneficiária disso. Quem ganha com esse jogo é o homem, e só o homem.

Sim, eu entendo que é quase inevitável surtar e dizer que uma mulher é machista quando você vê uma garota reafirmando que machismo é legal e que feministas são chatas bobas cara de melão, e eu sei que dá uma louca vontade de sacudi-la até ela perceber o que está fazendo, mas é preciso lembrar que ela, por mais que esteja demonstrando ideias machistas, não é a beneficiária disso. Ela não vai receber nenhum agrado, não vai ser elevada ao mesmo status do seu opressor. Vai continuar a ser oprimida assim como qualquer outra mulher. Ainda vale apontar outro ponto: ser mulher é difícil. Ser parte de qualquer minoria é difícil. E pessoas querem se incluir na sociedade. Não todas, eu sei, mas uma maioria muito significativa tem necessidade de aprovação, necessidade de ser incluída, necessidade de ter suas ideias validadas. Considerando que nós somos educadas a sentir que precisamos de aprovação masculina o tempo todo, então uma mulher que perpetue ideias machistas não está fazendo mais do que procurar ser aprovada. Eu não sei vocês, mas por mais que eu fique maluca ao ver esse tipo de coisa, não consigo não compreender. Eu tenho que compreender. Eu preciso entender que é uma maneira que aquela mulher encontrou de sobreviver na sociedade: concordar com seu opressor e ficar na linha.”

 

O que ocorre, então, é que diversas mulheres reproduzem o discurso machista que foram ensinadas a seguir. Eu cresci sob um discurso machista. Você cresceu sob um discurso machista. Todos crescemos sob um discurso machista pois vivemos em um mundo machista. É extremamente difícil “sair do armário” do feminismo e participar da luta. Até porque algumas pessoas simplesmente não querem – e tá tudo bem, não precisam querer. Só que o processo de mudança é gradual. Não podemos cobrar de mulheres que elas não tenham um discurso machista se elas nascem e crescem em uma sociedade como a nossa.

Eu, particularmente, demorei muito tempo pra entender que eu era feminista. Quando ainda estava no colégio, feminismo era visto como um movimento radical, que queimava sutiãs e, principalmente, vivia no passado. Já sofri com abuso sexual, fisicamente, duas vezes. Sofro com assédio verbal, nas ruas, diariamente. Nunca cheguei a ser estuprada. Conheço quem foi. E, mesmo assim, não conseguia entender que feminismo não é uma luta do passado. Que isso tem tudo a ver com feminismo. Que não existe algo como “não ser machista nem feminista, apenas querer igualdade” (mais abaixo comento um pouco sobre isso).  Aos poucos fui me libertando, lendo sobre. Me indignando com coisas que eu via e não eram certas, com piadas que não deveriam gerar risadas. Assim, cada dia fui me descobrindo mais… feminista. (!) Ano passado eu já participava de diversos grupos no Facebook para discussões acerca do feminismo, havia ido a duas edições da Marcha, e, mesmo assim, repetia ofensas como “puta” ou “vadia” sobre outras mulheres. Inconscientemente. Nem importava se o comportamento delas que havia gerado a ofensa tinha qualquer coisa de sexual ou não: as primeiras ofensas em que pensamos para xingar uma mulher são essas. Quando xingamos um homem, é a mãe dele que ofendemos. Fui aprendendo que não adiantava lutar de um lado, se reforçava todo o sistema errado de outro. É uma mudança simples de vocabulário que representa uma mudança grande de pensamento. Hoje faço um exercício diário: quando eu me irritar, não irei dizer tais palavras. Esse ano ainda não disse. Não digo há meses. E é uma coisa bem básica, mas que pode transforma muita coisa.

A Tina Fey disse, tá dito.

“Tá, mas o feminismo não é sobre igualdade? Por que vocês não lutam por…”

AAAAAAAAAAAAH. Esse ponto é o último, porém o mais importante. Homens, parem de questionar o porquê de as mulheres não lutarem pelo “serviço militar obrigatório para mulheres”. Primeiro porque não faria nenhum sentido, já que o feminismo luta pelo direito de escolha, logo, jamais buscaria mais uma obrigatoriedade na vida das mulheres. O que ocorre, sim, você que não se informa, é diversas correntes do feminismo lutarem pelo fim do serviço militar obrigatório – para qualquer um. Segundo porque, vamos colocar as coisas de forma bem óbvia: essa não é uma luta dos homens? As mulheres lutam pelo respeito aos seus corpos, parto humanizado, melhores salários, direito de escolha (…). Se os homens desejam o fim do serviço militar obrigatório – o que é totalmente justificável -, saiam às ruas também! Esse é meu pensamento enquanto mulher feminista, mas há diversas que levantam essa bandeira, sim, então a acusação é, além de burra, injusta. Então, na verdade, vamos resumir em: homens, não tentem regrar o movimento alheio. Não cabe a vocês. Nesse movimento, nós somos as protagonistas.

“Ainda não entendo porque estão querendo benefícios exclusivos para vocês…”

Outra crítica comum é a de que mulheres querem leis, benefícios, medidas exclusivas – como a Maria da Penha. Parece inacreditável, mas há quem questione a existência de uma lei contra violência doméstica para as mulheres.

Sim, essa imagem é real.

Não entrarei na explicação sobre a existência da Lei aqui porque, para mim, os números de violência doméstica no Brasil são autoexplicativos. Não vamos nem pensar em comparar aqui os índices masculinos e femininos porque vai ficar vergonhoso. O que vale ser comentado é: sim, queremos leis exclusivas. Assim como deve haver lei contra a homofobia. E o racismo. Porque você não pode buscar apenas igualdade em um sistema desigual. Querer apenas leis “iguais” em um sistema já machista é apenas fazer crescer o machismo. Querer igualdade em um sistema desigual é promover a desigualdade. O feminismo não luta por igualdade, luta por equidade.

Equidade é uma virtude definida por Aristóteles, na sua obra “Ética a Nicômaco”. Nela, vemos que equidade é um valor comparável à justiça – mas não idêntico. Ambos buscam o “justo”, mas a equidade não se refere à justiça legal. Segundo Aristóteles, “como a lei se torna insuficiente pelo seu caráter universal, a equidade aparece como uma retificação desta, revendo o erro devido a uma expressão absoluta da justiça absoluta, em situações especiais ou de exceção”.

Fácil, né?

Todos esses fatos e questionamentos me fazem crer que o feminismo é fundamental para que, hoje, eu me sinta viva. Cheguei em um momento em eu não consigo mais fingir que não vejo certas coisas, ou simplesmente ficar calada perante situações absurdas, que geralmente não são questionadas. É a nossa hora. Vamos questionar. O Brasil nunca esteve tão disposto a debater o feminismo – embora, também, o machismo nunca tenha estado tão em alta. Nosso momento é hoje, e feminismo não é passado. É uma luta por um presente digno e um futuro melhor, para todas as mulheres – sejam elas cis, trans, o que quiserem. Nós somos diferentes, sim. Todas somos diferentes. Plurais. Lindas. Domingo, dia 27, estarei na Marcha das Vadias, lutando. Assumindo, gritando: se ser livre é ser vadia, eu sou vadia.

Hoje eu entendo que, na verdade, o pensamento da época do colégio estava certo. Feminismo é radical. “Feminismo é a ideia radical de que mulher é gente”.

Links úteis:

Porque não faz sentido dizer que uma mulher é machista (texto completo).

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